terça-feira, 7 de agosto de 2012

O semeador e o que semeia

Era dezembro de 1997 e algumas das questões do vestibular que participava, da universidade em que viria me graduar, faziam referência ao Sermão da Sexagésima, do padre Antonio Vieira, pregado na Capela Real de Lisboa no ano de 1655. Vejamos alguns trechos:

Será porventura o não fazer fruto hoje a palavra de Deus, pela circunstância da pessoa? Será por que antigamente os pregadores eram santos, eram varões apostólicos e exemplares, e hoje os pregadores são eu, e outros como eu? — Boa razão é esta. A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia. (...) Entre o semeador e o que semeia há muita diferença: uma coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra o que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador, e outra o que semeia; uma coisa é o pregador e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é ação; e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo.

[VIEIRA, Antônio (Pe). Os Sermões. Seleção de Jamil Almansur Haddad. São Paulo: Melhoramentos, 1963, p.80.]

Bela a comparação entre o semeador quem semeia. Uma coisa é nome outra é ação. Ou: uma coisa é posição outra é realização. De nada adianta ter nome de pregador se não há ação e sentimento. Mais importa o viver, os exemplos e as obras do que um belo discurso.

A responsabilidade do pregador é grande, pois diante dele está uma plateia de fieis ouvintes e muitos destes acreditam sem questionamentos em tudo o que ouvem. Alguns trechos da bíblia podem ser utilizados de uma forma errônea e equivocada. Veja: pode-se muito bem condenar relacionamentos de pessoas do mesmo sexo baseado no livro do Levítico, mas não seguem o que se recomenda no livro de Deuteronômio, quanto a mulheres que não se casam virgens - a escritura recomenda a morte a pedradas neste caso. Felizmente isto não se faz e há leis que impedem homicídios! Mesmo em alguns países extremamente fechados, não ocidentais, há forte pressão de organismos internacionais para que atos parecidos com este sejam abolidos. Mas, voltando aos pregadores: quando questionados sobre homossexualidade, enfaticamente citam que a bíblia condena(*) e se está na bíblia, pronto! Não se pode discutir nem pensar em mais nada.

Certa vez participava de um culto no interior de São Paulo e o pregador afirmou que não era a Terra que girava em torno do Sol, mas sim que este girava em torno da Terra. A justificativa dele foi simples, para isto citou a guerra entre os israelitas e amorreus, onde houve a intercessão de Josué para com Deus a fim de que os filhos de Israel obtivessem a vitória:

Então Josué falou ao Senhor, no dia em que o Senhor deu os amorreus nas mãos dos filhos de Israel, e disse aos olhos dos israelitas: Sol, detém-te em Gibeão, e tu, lua, no vale de Aijalom. E o sol se deteve, e a lua parou, até que o povo se vingou de seus inimigos. Isto não está escrito no livro do Reto? O sol, pois, se deteve no meio do céu, e não se apressou a pôr-se, quase um dia inteiro.
[Josué 10:12-13]

Relembrei do filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.) que defendia este ponto de vista (não baseado no fato bíblico) e do matemático e astrônomo grego Ptolomeu (78-161 d.C.) e de sua obra "Almagesto" que deu forma ao geocentrismo, modelo cosmológico mais antigo que se baseia na hipótese de que a Terra estaria parada no centro do universo com os corpos celestes, inclusive o Sol, girando ao seu redor.

O astrônomo e matemático Aristarco de Samos (310-230 a.C.) foi o primeiro cientista a propor que a Terra gira em torno do Sol (sistema heliocêntrico) e que a Terra possui movimento de rotação. Nicolau Copérnico (1473-1543), cônego da igreja católica e também astrônomo e matemático, foi quem desenvolveu a teoria heliocêntrica do Sistema Solar. Porém apenas no século XVI, o tema ganhou notoriedade ao estabelecer a separação entre o pensamento dogmático religioso e pensamento científico. Foi de extrema relevância para este processo, o matemático, físico, astrônomo e filósofo italiano Galileu Galilei (1564-1642), que defendeu a tese de Copérnico sobre o heliocentrismo. Porém a igreja católica estava em uma época conturbada e endurecia sua vigilância sobre a doutrina para fazer frente às derrotas que sofria pela Reforma Protestante e, dessa forma, o Papa Urbano VIII sentiu que a aceitação do modelo heliocêntrico não era algo bom e convocou Galileu a Roma para ser julgado, apesar de este se encontrar bastante doente. Após um julgamento longo, foi condenado a renegar publicamente as suas ideias e à prisão por tempo indefinido. Os livros de Galileu foram censurados e proibidos, mas foram publicados nos Países Baixos, onde o protestantismo já vinha substituindo o catolicismo, o que tornava a região livre da censura do Santo Ofício.

O fato é que com a evolução do conhecimento e da ciência, hoje sabemos mais sobre nosso Sistema Solar. Estaria então errada a bíblia? Não. Vivemos na superfície terrestre e mesmo com o conhecimento de que a Terra é redonda temos a impressão de viver sobre uma superfície plana. E, localmente, isto é verdade. Porém se observarmos o planeta de um modo global, do espaço, perceberemos que a Terra é redonda. A curvatura da superfície terrestre é quase imperceptível para uma pessoa sobre a mesma. O mesmo ocorre para um observador (terrestre) do Sol. A impressão que temos é que o Sol se movimenta e não a Terra. Sempre ouvimos que o Sol nasce no leste e se põe no oeste. Somos levados a pensar deste modo pois vivemos sobre a superfície do planeta e não percebemos seu movimento. Na época do escrito bíblico não havia conhecimento científico para tal.

O pregador ao reafirmar a teoria geocentrista mostrava-se contra a ciência ou pelo menos demonstrava uma tamanha falta de conhecimento. Não é uma questão de fé. O perigo é que, devido a sua eloquência e convicção da mensagem, poderia levar muitos ao erro. Não hesitei. Ao final do culto expus ao pregador o que a ciência diz a respeito e não fiz isto por prepotência nem por vaidade. Meu compromisso era apenas com a verdade. Dias depois, na mesma igreja, o que ouvi em uma pregação foi surpreendente. Dizia o pregador:

"Você está aqui sentado e acha que é alguma coisa porque faz mestrado. Você não é nada! Se Deus mexer um parafusinho da sua cabeça, vai ficar louco, babando, e terão que colocar comidinha em sua boca".

Nesta ocasião eu cursava mestrado na USP. Curioso com a pregação, observei praticamente toda a igreja e não havia ninguém ali que fazia mestrado, exceto eu. Não me considerei enquadrado nesta pregação dada a certeza de que Deus jamais falaria comigo nestes termos pois conhecia meus sentimentos e intenções. Estava tocando na orquestra nesse dia e um amigo, músico também, sentado dois bancos à minha frente em tom de brincadeira, virou e me disse: "Ei rapaz, essa foi pra você, só você aqui faz mestrado". Não que ele concordasse com a pregação, mas percebendo o direcionamento da mesma, brincou comigo. Obviamente a soberba e a arrogância são condenáveis - e pode existir pessoas assim - porém jamais pode ser condenável a busca de conhecimento e o estudo.

A responsabilidade do pregador é grande. Pessoas procuram a igreja para um certo conforto espiritual, para ouvir bons e úteis conselhos, ensinamentos válidos e não para ser atacadas pelo pregador. E o pior é que muitas das vezes, anciães e cooperadores(**) escondem seus motivos utilizando um argumento muito comum na Congregação Cristã no Brasil: aquele que não é o homem quem fala, mas sim Deus pela sua boca na hora da Palavra, apesar de a própria cúpula da igreja já ter reprovado tal atitude dos pregadores.

Os irmãos do ministério da Congregação, de um modo geral, tem certa dificuldade em lidar com jovens que criticam, questionam e contrapõem algumas ideias que disseminam nas igrejas. Quando percebem que não têm argumentação que se sustente, mesmo dentro da própria bíblia, partem para o ataque. Preferem uma fé cega, com seus preconceitos, discriminações e exclusividade diante do mundo.

Existe, de fato, muita diferença entre o semeador e o que semeia. Não pode o pregador dizer bobagens e se esconder nos termos da fé, muito menos por trás de sua posição de liderança na igreja. Viver entre o povo, ser conhecedor das reais dificuldades que assolam muitos, compreender que existe diversidade e as diferenças, sentir as coisas, participar como aquele que peleja em uma batalha, viver a realidade das coisas e perceber a condição humana, isto sim dá ação ao pregador e não o torna apenas um pregador de nome.

Notas:
  • (**) Ancião é o cargo ministerial máximo na Congregação Cristã no Brasil. É responsável e supervisiona todos os serviços da igreja: presidência dos cultos, batismos, santas ceias, reuniões de mocidade, unções, funerais e presidência de reuniões ministeriais (neste caso cabe apenas aos mais antigos de ministério) entre outros serviços de cunho espiritual ou administrativoNem todas as igrejas possuem um ancião local, mas sempre há um ancião designado para supervisioná-la. Já o Cooperador do Ofício Ministerial, ou apenas Cooperador, é responsável pela presidência de cultos em uma congregação específica (templo da igreja em algum bairro). Cada congregação possui um Cooperador. Não realiza batismos nem santas ceias e nem preside reuniões de mocidade, porém pode atender funerais e realizar unções. Quando há um ancião na congregação a presidência do culto cabe ao mesmo, a menos que solicite ao Cooperador que o presida.

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